Dos amores à guerra, a ‘Handycam’ de Sophia Chablau e Felipe Vaqueiro documenta as cenas do nosso tempo

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Foto: Helena Ramos (@helenaramos21).

“Um disco pode retratar coisas muito diferentes, do mesmo jeito que uma handycam”, Sophia Chablau disse à Casa Natura Musical dias antes do seu álbum com Felipe Vaqueiro vir ao mundo. São esses registros sonoros que os dois vão apresentar no nosso palco daqui a algumas semanas, no dia 26 de outubro.

Em onze faixas, eles testam muita coisa: composições a duas e quatro mãos; letras em português, inglês e também brincando com os dois idiomas; vocais ora só dele, ora só dela e, então, dos dois. São encaixes que também se refletem na sonoridade, guiada pela mesma curiosidade de quem reencontra uma câmera antiga numa gaveta e fica feliz ao descobrir que o aparelho ainda funciona. 

A experimentação também aparece no som. Na parceria, tiveram a oportunidade de testar novos caminhos e entrar em contato com lados que não aparecem nos seus outros projetos – caso de Sophia com Besouro Mulher e Uma Enorme Perda de Tempo, e Vaqueiro, com Tangolo Mangos. Aqui, a canção é o fio-condutor do projeto, o que faz com que a sonoridade gire em torno da voz e do violão. 

Para Sophia, uma marca desse processo foi o fato de Vaqueiro conhecer tão bem a MPB, que é transposta para o trabalho a partir das lentes e ouvidos da dupla. O aspecto independente também dá as caras. No estúdio, enquanto gravavam, em diversos momentos usaram “indie” para descrever as músicas que estavam surgindo. “Elas já saíam assim”, Sophia relembra.

Felipe também traz uma referência de fora para descrever o som: The Velvet Underground, banda de rock norte-americana que surgiu nos anos 1960 e ficou conhecida pela sua experimentação. “Às vezes eu ouvia e falava ‘pô, isso soa meio Velvet’”, diz. “Mas a gente não estava mirando numa coisa assim, estava mirando nas músicas em si.”

Foto: Helena Ramos (@helenaramos21).


Handycam é fruto do caminho que Sophia e Felipe começaram a trilhar em 2023, quando se conheceram no interior de São Paulo enquanto estavam em turnê com suas outras bandas. O encontro teve um impacto dos dois lados, fazendo com que a criatividade de um aguçasse e instigasse a do outro.

“Eu estava num momento de autoestima baixa, com várias coisas ligadas à música”, Vaqueiro conta. “Mas a partir do momento que eu comecei a criar com a Sophia, isso acendeu uma chama muito forte em mim. Uma das primeiras músicas que fizemos, inclusive, entrou para o disco: ‘Tempestade de Verão’”.

Para Sophia, o vento bateu na mesma direção. “Nosso encontro realmente desbloqueou uma trava de composição em mim”, compartilha. “No disco, temos músicas que escrevemos sozinhos, mas que estranhamente dialogam entre si. Várias delas, por exemplo, só compus porque já tinha composto outras com o Vaqueiro. A gente entrou numa engrenagem maluca.” 

Até chegarem a Handycam, outros momentos marcaram o trajeto dos dois. Um desses episódios aconteceu no Museu da Imagem e do Som paulistano, em março de 2024, quando Sophia chamou Felipe para participar do seu show. Além da voz e violão, notaram que levaram química musical para o palco.

O começo de 2025 trouxe um compacto com duas músicas, “Nova Era” e “Ohayo Saravá”, lançado a partir de uma parceria luso-brasileira, com o RISCO daqui e o Cuca Monga de lá.

Embora essas canções não façam parte de Handycam, por terem servido de teste para ver se a conexão entre os dois era verdadeira, elas foram fundamentais para que Vaqueiro e Chablau criassem um vocabulário só deles, que depois ganharia novas palavras e sons no álbum. 

Plano-sequência

“A gente gravou tudo muito rápido, tipo em oito dias”, Vaqueiro recorda. Essa agilidade e espontaneidade conversam com o próprio nome do disco: “É menos pretensioso você gravar algo numa handycam”, Sophia afirma. “E isso está relacionado ao nosso momento. Por isso a gente quis correr com o disco, para não ficar segurando por um ano e pensar num planejamento perfeito”, continua.

Outros personagens estiveram com eles nesses oito dias: Marcelo Cabral, que trabalhou com Metá Metá, Elza Soares e Criolo, assumiu o baixo, enquanto a bateria e as percussões ficaram com Biel Basile, o “Bielzinho, Bielzinho” d’O Terno. Já os cenários se dividiram entre a Salvador de Vaqueiro e a São Paulo de Sophia. Na capital paulista, eles foram para o Estúdio Canoa, liderado por Gui Jesus Toledo, responsável pela mixagem e coprodução do álbum, ao lado dos cantores e compositores.

Mas esse não foi o primeiro contato deles. Cabral e Basile também tocaram no compacto, além de terem subido ao palco com Chablau e Vaqueiro no Queremos! Festival em abril deste ano – numa noite que contou com Arnaldo Antunes na programação. Dos ensaios para esse show no Circo Voador, no Rio de Janeiro, surgiram os esboços dos arranjos que entraram para o disco.


A ficha técnica ainda revela um convidado especial nas cordas: Fabio Tagliaferri, pai de Sophia, que também participou dos outros discos da filha. “Ele gravou no disco da Besouro Mulher e também nos dois da Enorme”, ela fala. Em Handycam, Tagliaferri toca viola de arco nas quatro últimas faixas do álbum. 

Bandolim, sampler e synths também ajudam a compor essa trama, construída a partir da confiança no conhecimento de Sophia e Felipe em quem estava no estúdio com eles e da vontade de experimentar. “A gente tinha uma série de referências, mas sinto que o álbum foi uma consequência de estar ali no estúdio, trocando com outros músicos”, Vaqueiro reflete.

“Gosto de ser muito tranquila na metodologia”, Sophia comenta. “A nossa juventude pensa muito em estética. Tudo bem, tem que pensar na estética, mas tem que pensar em comunicação também, porque estética sem nada por trás é só um enfeite”, continua. “As músicas que eu mais amo na vida são as que eu ouço a letra e a melodia e falo: ‘uau!’”. 

Sinopse

A capa de Handycam serve como metáfora para alguém que filma algo. “Quando a pessoa segurar o CD aberto, vai ser como se ela estivesse segurando uma câmera”, Sophia explica. Por trás dessa ideia está Helena Ramos, diretora de arte do disco, que convidou João Zocchio para ilustrar o trabalho. 

Ilustração: João Zocchio (@jzocchio). Direção de arte: Helena Ramos (@helenaramos21).

Ao longo dos 36 minutos do disco, Sophia Chablau e Felipe Vaqueiro registraram muitas cenas que poderiam ser curta-metragens sobre questões individuais, como se apaixonar e lidar com a solidão, mas também sobre assuntos que aparecem nas notícias. 

Entre “Cinema Brasileiro” e “Cinema Total”, não existe impasse para descobrir qual veio primeiro. Foi o nacional que saiu na frente. “O cinema brasileiro tá pegando fogo / E eu estou pegando fogo pelo cinema brasileiro”, Chablau já cantava em alguns shows nos últimos anos, mas só foi gravada agora. A música, que faz referência ao incêndio da Cinemateca Brasileira em 2021, também é uma carta de amor da cantora à sua namorada. Na época em que escreveu a canção, elas ainda não estavam juntas, então Sophia se declarou ao cinema brasileiro como se estivesse se declarando para Dora Vinci, que assina a letra de “Cinema Total” junto com ela.

Em outra faixa, “Minado”, Vaqueiro vai pelo mesmo caminho. Quando escreveu a música, falar de campo minado era uma forma de dedicar uma canção à sua agora namorada, fã do jogo, de forma mais velada, porque o sentimento ainda estava escondido. Assim como Sophia sinaliza a fragilidade do cinema brasileiro na música de mesmo nome, Felipe aproveita o tema bélico para falar de guerra: “Quando as bombas matam gente estadunidense, vemos no jornal / Mas se é gente inocente longe do ocidente, do norte global / Se amansam as manchetes / Somem as claquetes / Não fazem questão / De lembrar que essas bombas não nascem do céu e nem brotam do chão.”

Foto: Helena Ramos (@helenaramos21).

“A gente tem a tarefa de registrar o que está acontecendo”, Sophia afirma. Neste ano, se apresentando com Uma Enorme Perda de Tempo em um evento da prefeitura de São Paulo, a banda usou o telão do palco para se posicionar contra o genocídio palestino, a escala 6×1 e também contra o presidente norte-americano Donald Trump. Em resposta, a organização cortou as projeções e impediu o grupo de dar continuidade ao show

“Dependendo da música brasileira que você escuta, você vê que o Brasil é uma guerra. Então por que algumas músicas abordam esse tema e outras nem tanto? É uma questão de classe, de raça e de gênero”, Sophia analisa. “Ou você continua vivendo na sua ingenuidade, nesse lugar alienado, ou você faz alguma coisa.”

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