Não foi só um insight: ‘#1’, de Jaloo, completa 10 anos

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Se, em 2015, Jaloo soletrava seu nome logo na primeira faixa do seu disco de estreia, uma década depois, a música dela fala por si só, sem necessidade de apresentações. Com #1, a artista paraense reinterpretou o tecnobrega que cresceu ouvindo. E, ao fazer isso, inspirou seus pares e encantou uma geração que adotou as doze canções do trabalho como trilha sonora dos anos formativos. 

“Para ser bem sincera, eu não tinha a menor ideia do que eu estava fazendo”, ri ao refletir sobre o nascimento do disco. “É daí que vem a mágica. Abre esse lugar que, com o tempo, a gente vai lapidando até se tornar uma joia.”

Apesar de ter encontrado o pote de ouro no fim do arco-irís, Jaloo não sossegou. Isso apenas fez com que ela quisesse ir mais longe. “Foi com esse disco que conquistei confiança”, compartilha. “Me impus e acreditei em mim. Parti nesse processo louco de ser artista, buscando mais a validação dos outros do que a minha. Com o #1, tudo se inverteu.”

Nos palcos, onde essa força se materializou, suas músicas viraram hits. Nos shows, ainda hoje, faixas como “Insight”, “Last Dance” e “Ah! Dor” levam todo mundo de volta a 2015, quando as criações da cantora encantaram até a Grimes. Da canadense, recebeu elogios e também o aval para regravar “Oblivion”. 

A relação de Jaloo com covers é uma herança das suas primeiras experimentações musicais. Antes de se mudar para São Paulo, começou a fazer remixes e testar os limites dos softwares de áudio. 

“Existem muitas formas de fazer música, para mim, essa é o que mais se aproxima de algo divino. Você pega a onda, o comprimento dela vai ter um tipo de nota, mais grave, mais aguda. Se ela for serrada, quadrada ou redonda, ela vai soar de uma forma diferente, com mais frequências de alcance. Isso te coloca no lugar de um ser que cria, algo que me encantou de uma forma que eu não conseguia enxergar mais nada. Meu propósito de vida era esse.”

Com “Adeus”, Jaloo encerra #1. Mas o disco nunca ficou no passado. No dia 14 de novembro, ela chega à Casa Natura Musical para comemorar os dez anos do álbum. Conversamos com a artista sobre revisitar as memórias de 2015, as influências que guiaram sua sonoridade, identidade visual e muito mais. A entrevista completa está logo abaixo! 

Casa Natura Musical: No dia do aniversário de dez anos do disco, você fez um post no Instagram falando da época do lançamento. Como foi revirar essas lembranças?

Eu não lembrava de muita coisa! Como falei lá no post, eu não me revisito muito, porque tenho medo de não gostar do que vou ver – e tenho medo de ver coisas que não quero ver. Só que fui percebendo que talvez isso seja uma criação da minha imaginação, esse lugar de medo. O medo é meio que isso: uma defesa anterior ao ataque. Para tentar sobreviver, a gente vai criando essas ferramentas. Talvez eu tenha criado isso sem necessidade. Nossa, estou filósofa hoje (risos).

Casa Natura Musical: Me conta um pouco sobre a sua relação com a música?

Começou com uma curiosidade que tomou conta de mim. Quando lembro dessa coisa toda, penso no contato com outros tipos de arte, algo que aconteceu quando vi o meu tio desenhando incrivelmente bem – ele tinha aquele traço de quadrinho. Vi isso muito criança e fiquei encantada, me apaixonei pelo desenho e mergulhei nisso. Eu desenho, acredito que bem, ainda hoje. Faz tempo que eu não faço isso, mas teve esse mergulho. Outras formas de arte em geral têm esse lugar de encantamento. 

Eu também senti isso na primeira vez que manipulei um áudio. Lembro que quando era bem criança, alguém tinha um gravador na vizinhança, e só de a gente ouvir a nossa própria voz, tinha uma mágica ali. Já achava isso muito extraordinário, mas quando cursei Publicidade e Propaganda – que eu ressalto, foi numa universidade particular caríssima, que eu entrei por meio do Prouni –, tive uma disciplina de Rádio e TV. Foi aí que entrei em contato pela primeira vez com uma gravação nesse meio eletrônico do computador, em que eu podia manipular esse áudio de várias formas: gravar, sobrepor, aumentar o volume. Até criar a própria síntese sonora, uma coisa pela qual sou apaixonada até hoje.


Casa Natura Musical: Antes de lançar seu primeiro disco, você se destacou com os remixes que fazia. Como foram os primeiros?

Os primeiros, tenho que ser bem clara, eram ruins. E eu achava incrível, porque mesmo sendo ruins, acabavam chamando a atenção dos outros. Por exemplo, um remix que fiz da Rihanna não estava no tom, só que ele tinha tantos elementos estranhos que eram, sei lá, interessantes. [Tentamos encontrar

O Diplo, uma vez, lembro que ele estava numa festa lá no Pará, e eu já era DJ, tocava algumas coisas. Nossa, ele pagou um pau, falou um monte de coisa f*da. Eu fiquei passada. Naquela época, eu já estava sob os olhares de muitas pessoas do mundo. E é engraçado, essa metáfora dos olhares foi usada demais na identidade do primeiro disco. É muito sobre isso. Me tornei vista.

Casa Natura Musical: Aproveitando essa questão da identidade, você tinha falado dos desenhos que você fazia, que você tinha parado lá atrás. Esse seu lado te ajudou a criar a identidade do #1?

Sim. Lembro que lancei “Pa Parará” como single muitos anos antes do primeiro disco. Foi o meu primeiro single, e também minha primeira música autoral. A capa era um desenho que eu mesmo tinha feito, abraçando a minha versão real. Eu adoro adotar esse lugar de figura meio mítica. Tem uma parte de mim que eu não mostro naquela figura, e tem parte da figura que não é nada eu. É uma grande brincadeira, eu adoro isso.


O #1 tem esse lugar mais futurista, anacrônico, talvez. Já o segundo é mais focado no brasileiro, ao mesmo tempo que é um homem extremamente masculinizado. E eu fiz tudo de propósito, era um personagem também, não era eu. Eu já estava me despedindo do gênero que eu tinha nascido, isso era uma conversa que eu tinha comigo mesma há um tempo. Nunca tive disforia. Então, naquele disco, eu tirei coisas pra mim mesma. Falei “olha, já que é pra ser homem, bora ser homem ao extremo”. É muito engraçado ver o quanto você pode fazer o que quiser com o seu corpo, com a sua identidade, e acabar despertando diversos tipos de interesse ou desinteresse nos outros.

Já o terceiro é o mais autêntico, realista. Ele finalmente mostrou uma parte de mim que ainda não tinha sido mostrada. Ao mesmo tempo, a figura era mítica também, uma espécie de guerreira de um lugar também meio estranho, deslocado do tempo. Eu abraço um demônio na capa, que talvez seja muito menos demônio do que ela. São diferentes, mas em todos eu brinco, eu que sou a personagem.

Casa Natura Musical: “Pa Parará” foi o seu primeiro single. O que aconteceu desse lançamento até o disco sair?

O Miranda [Carlos Eduardo Miranda, produtor musical] foi muito importante nesse processo. Ele abriu muitos caminhos para mim, sou agradecida até hoje. Ele foi um pai e amigo, eu podia falar com ele sobre tudo. No começo, ele já namorava o que eu fazia, tinha um encantamento, era um dos olhinhos. Quando ele recebeu uma proposta de criar um selo, me mandou uma mensagem e falou: “olha, agora que estou com esse selo, tenho que lançar uns artistas e queria que você fosse uma delas”. Aí eu, lá na minha CLT como técnica de som, falei: “tá bom”. Foi até engraçado no começo, porque eu ficava perguntando para ele se já podia pedir demissão. Ele falava para eu segurar mais um pouco, até que um dia disse: “agora pode”. 

Eu já tinha me apresentado em alguns lugares, mas não tinha repertório. Fui pegando vários remixes que eu já tinha feito. Também pegava as músicas da Gaby [Amarantos], tirava a voz dela e cantava por cima. Então muita coisa nasceu assim, de não saber bem o que estava fazendo.

Teve a música “Adeus”, que eu executei num espetáculo que o Miranda montava, o Terruá Pará, foi lá que conheci Dona Onete, Gangue do Eletro – a Gaby eu já conhecia. Dessa colcha de retalhos, surgiu o primeiro disco. Ele já era um apurado da minha história antes, desde 2009, quando eu lancei a minha primeira produção toda errada, que foi o remix da Rihanna (risos).  

Casa Natura Musical: Você falou do Miranda, diretor artístico do #1. E como foram as trocas com o Kassin, produtor do álbum?

Adoro falar dessa história do Kassin, porque eu já tinha muita segurança, mesmo não sabendo muito que estava fazendo. Mas o Miranda sempre foi muito sábio. E uma das coisas que ele falou foi que a gente precisava de alguém para pelo menos olhar tudo e dar um nó nas músicas. Lembro que fiquei chateada na época. Pensei: “caramba, ele não confia em mim, vai colocar outra pessoa para produzir”. 

Entre as opções de produtores que ele trouxe, gostei do Kassin, porque já o conhecia do trabalho dele com Los Hermanos, que eu adorava – sou hermanete, risos. Então passei uma semana no Rio, indo lá no estúdio dele, gravando umas vozes, editando coisas. E, principalmente, passando tudo que eu tinha feito no computador pelos equipamentos analógicos, para soar de uma forma mais orgânica. Isso foi muito legal, uma das coisas que mais amo desse disco. Lembro que, na época, ele dava o play e realmente gravava. A gente tinha que ouvir peça por peça, até o final. Era um processo chato. Mas só de passar por ali, já vinha de uma forma diferente. E uma das coisas que mais amei em trabalhar com ele foi que ele confiou em mim. Ele ouviu e falou: “nossa, tá muito bom!”

“Se tu quiser alguma coisa, um sintetizador aqui ou ali, eu faço, mas não precisa fazer nada, não. Tá muito bom isso aqui.” Essa foi a primeira vez que tive uma validação de alguém de quem eu era muito fã, então a experiência toda foi incrível. Só que eu preciso deixar claro, o Kassin interferiu nos arranjos, pouquíssimo ou quase nada. Tem música que não tem absolutamente nada de arranjo dele. “Last Dance” tem uns sintetizadores bem bonitos que ele gravou por ali. Outras músicas que têm uns pedacinhos ali dele de arranjo. Mas isso de não interferir só por interferir, achei muito sábio da parte dele, muito bonito. Guardo com muito carinho. E, quando vejo o trabalho de alguém f*da, não meto a mão só por meter.

Casa Natura Musical: Como você construiu a sonoridade do disco? O que te guiou?

No cursinho, conheci um amigo, o Tárcio – a gente é amigo até hoje, fica se mandando meme. Ele era apaixonado por música, foi ele que me mostrou a Björk, por exemplo. Lembro de visitá-lo e levar um pendrive. Toda vez que ia lá, ele passava uns discos pra mim. Eu escutava no meu MP3 de 128 MB (risos). Também baixava muita coisa na universidade, na biblioteca. Em casa, já tinha computador, mas ainda não tinha internet. Fui chegar perto de um computador com 18 anos.

Me encantei por música. Ouvir música também era uma paixão. Quando eu percebi que podia fazer música, aí ferrou. Então, o que me inspirou foi muito o que eu ouvia. Desde música brega, o tecnobrega, que eu escutava no rádio… Banda Fruto Sensual, escutava desde criança, a Gaby também. A Gaby, não desde criança, desde adolescente, não vou fazer isso com ela (risos). Mas a minha mãe era musa de karaokê, adorava cantar as Asa Morena, escutava Fagner

Tem muita coisa de tudo quanto é canto. Já ouvia Robin, já ouvia Björk. E eu tinha um compromisso comigo mesma. Tinha todo o direito de fazer o tecnobrega que era feito, porque era minha terra, era música que ouvia. Mas, assim, alguma coisa me dizia: “você vai fazer igual?”. E eu já tinha esse apaixonamento por criar em forma de ondas mesmo, da síntese sonora. Então, eu pegava tudo aquilo que gostava de ouvir, mas fazia do meu jeito, e acabava soando do meu jeito. O legal de fazer do jeito que a gente pode fazer é que soa do jeito que a gente é. Foi aí que nasceu essa identidade sonora que é minha. Não tem quem tire, tá aqui. 

Casa Natura Musical: E assim como a sua sonoridade deixou uma marca, as letras também. 

Além das minhas composições, acho importante falar que nem todas são minhas. Tipo “Chuva”, uma música da Thalma de Freitas e da Iara Rennó, que a Gaby gravou primeiro.

E “A Cidade” foi o meu primeiro presente da [MC] Tha. A gente já se conhecia, ela ainda estava engatinhando no que ia ser, e ela me mostrou essa música. Na letra, ela pensou tanto na minha vinda para São Paulo quanto na experiência dela de sair da cidade Tiradentes para o centro de São Paulo. São histórias, de certa forma, com algumas similaridades. Em algumas apresentações, eu até a chamava para cantar – depois veio “Céu Azul”, no segundo disco.

Casa Natura Musical: Como você sente que o disco influenciou o restante da sua discografia?

A principal coisa foi a confiança. Foi nesse disco que eu percebi que estava dando conta, estava mandando ver. Quando terminei a produção de “Say Goodbye”,  primeira música do segundo disco, foi um processo lento e artesanal.

Lembro que eu levei dias para reunir confiança, porque queria despertar o orgulho de uma pessoa que tinha indicado o Kassin. A gente nem trabalhava mais junto, já tinha acabado o selo, mas eu mandei a música para o Miranda. Ele respondeu emocionadíssimo, num lugar de muita alegria: “você está pronta, agora voa, você realmente amadureceu”. Isso foi muito legal, muito bonito.

Pensando nisso que você falou da validação, pensei na validação do público. Lembrou de uma entrevista sua, de 2015, para O Globo. Nela, você falou que o #1 era um disco sobre a sua geração. Acho que o tempo realmente mostrou isso, essa troca que também ficou evidente nos shows “Jaloo: 3 Eras”. Como foi notar o impacto do disco? 

É muito louco porque como eu falei naquela carta do Instagram, eu não olho para trás. Agora, estou olhando com carinho para tudo. Mas nesse não olhar eu acabei não percebendo o tanto de gente que me acompanhou nesse processo todo. Lembro da primeira vez que eu fiz o show “3 Eras”, olhava para o público e não parava de falar palavrão. Fiquei boquiaberta. Foi incrível. 

Estou muito nesse lugar de celebrar, estou começando a olhar. Tem aquele mito da Bíblia: “não olhe para trás, senão você vira sal”. Estou assim, salgadinha. Salgada e sorridente, olhando para tudo que está lá atrás.

Agora, para encerrar: depois de muito tempo, essa vai ser a primeira vez que você faz o show só do #1. O que está preparando para o dia 14 de novembro?

No Eras, se eu fosse tocar todos os discos como eles são, ia durar umas cinco, seis horas de show.  Do jeito que eu fiz, durou umas três. Dessa vez a gente vai ter mais calma, uma tranquilidade em cima dos arranjos. Vai ser uma experiência imersiva para quem gosta tanto desse disco.

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