
Com um vestido rosa pastel e os fios de sua franja todos no lugar, Julia Mestre nos recebeu no camarim da Casa Natura Musical para conversar sobre a apresentação por aqui e seu mais recente álbum, Maravilhosamente Bem.
Em setembro, o disco inspirado nas sonoridades e estética dos anos 1980 foi indicado ao Grammy Latino na categoria de Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa. A faixa-título, por sua vez, garantiu uma nomeação em Melhor Canção em Língua Portuguesa.
Lúdico, com personagens e fantasias, Maravilhosamente Bem é o terceiro álbum de estúdio de Julia. “Depois que lancei, até fiquei me sentindo vazia, porque eu estava com muita coisa guardada para jogar para o mundo”, confessou. “A indicação [ao Grammy Latino] veio há pouco tempo, e acho que ela só amarrou mais ainda essa ideia de que o disco tem chegado em muitos lugares e tem se conectado com as pessoas.”
“Por mais que você já tenha passado por esse lugar, não significa que você pode voltar. E eu me perguntei muitas vezes se os próximos projetos também chegariam a ter esse alcance”, continuou, referindo-se às conquistas com o Bala Desejo. O grupo formado por Dora Morelenbaum, Lucas Nunes, Zé Ibarra e ela venceu em 2022 o Grammy Latino na mesma categoria que Maravilhosamente Bem concorre. Embora uma reunião da banda não tenha sido descartada por seus membros, Julia Mestre agora segue com outra família musical, na qual Gabriel Quinto, Gabriel Quirino e João Moreira são indispensáveis.
Sobre a premiação, a cantora completou: “Quando fui indicada, e dessa vez com uma indicação solo, foi praticamente uma estreia de novo. Então, estou muito feliz. E é o primeiro show depois dessa notícia. Vai ser uma comemoração coletiva”.
O nome do novo álbum de Julia já sugere os temas de suas faixas. A artista fala de amor, autoestima e prazer feminino de maneira livre. Nos bastidores, porém, ela revelou que “pode não parecer”, mas é tímida e teve “muita dificuldade de expressar” seus sentimentos. Uma das saídas que a cantora encontrou para “desabafar” foi a escrita de diários, nos quais ela também registra composições. “Eu sempre gosto de voltar neles [diários] para entender um pouco melhor sobre o que passa aqui dentro. E aí eu faço esse exercício, que é uma dica também para quem gosta de compor e fica curioso por esse O caderninho é um alicerce nessas horas, porque eu consigo traduzir um sentimento muito puro, que acaba virando uma canção.”
A primeira música composta para o disco, aliás, nasceu assim. “Sou Fera” retrata a “dualidade” vivida por Julia em um momento de saúde instável e uma agenda cheia de compromissos profissionais. Ela lembrou: “Eu estava vivendo uma situação de vulnerabilidade muito forte. E, ao mesmo tempo, eu tinha que estar nos palcos sorrindo, entretendo. Acho que a canção ‘Sou Fera’ nasce desse desabafo. Por debaixo da pele, eu sou lobo, eu sou fera… Às vezes a gente precisa botar uma armadura que não mostra as suas partes frágeis, mas se você chega perto, por trás das garras, uma aura mansa, lambendo a ferida. Quando essa composição nasceu, eu achei que estava na hora de começar um novo projeto”.

Formando um paradoxo, Julia canta sobre questões íntimas sem abandonar o mistério. Em “Veneno de Serpente”, por exemplo, ela alude à tatuagem de cobra de um amor do passado, mas não revela sua identidade. “Eu fui entendendo que o meu flerte com o universo artístico, um lugar onde você tem que se expor muito, acontece talvez porque é onde posso brincar com o mistério, com o lúdico, dizer o que talvez pode não ser”, ponderou. “Acaba me protegendo. Pode trazer o meu lado mais reservado, mas posso inventar muita coisa. Sinto que esses personagens todos acabam sendo a Julia Mestre.”
Ainda pensando sobre a pergunta relacionada ao equilíbrio entre vida privada e pública, ela terminou: “Você me pegou agora. Não sei como vou conduzindo isso, mas tento cuidar do meu cantinho, do que quero guardar para mim. Acho que a gente, criando esses universos, acaba se protegendo, porque ficamos mais na fantasia do que na realidade”.

Além da imaginação, Julia teve como base para Maravilhosamente Bem diversas referências dentro e fora do mundo da música. Ela gasta seu espanhol em “Vampira”, canção de Rey Reyes que é, originalmente, uma salsa. Já “Pra Lua” foi pensada para integrar um álbum de Illy, o que acabou não se concretizando. Por isso, Julia repensou o que seria um afoxé e transformou a faixa em uma verdadeira balada. Todas essas mudanças na rota de Maravilhosamente Bem foram feitas com a ajuda da intuição e do amadurecimento da artista.
“Sinto que no meu primeiro álbum havia uma ingenuidade e muito de querer provar tudo de uma vez e mergulhar em muitas coisas. Hoje eu já me sinto — claro que no início de uma grande caminhada — uma pessoa com mais experiência de saber o que eu quero”, ela admitiu. “E eu sinto que agora eu começo a trabalhar em álbum por fase. Então, as composições vão nascendo dentro daquele universo que eu já quero construir. Já fico mais seleta em relação ao repertório que eu quero colocar, porque ele tem que fazer sentido naquela unidade.”
“Nesse álbum, eu queria tentar trazer esses dois lados que eu acho que combinam com a minha energia: a festa, das referências que eu bebo dos anos 1980, que eu falo também do disco e de ser uma pessoa com muita energia. Mas eu sinto que a minha voz combina muito com as baladas, com as coisas românticas, com a coisa mais calma, de se apaixonar. Eu quero ser trilha sonora de motel, sabe?”, continuou. Quando questionada sobre um álbum “para fazer amor”, ela indicou a dupla francesa Paradis e justificou: “Não gosto de ouvir música em português quando estou naqueles momentos, prefiro uma língua que não entendo”.

Marina Lima — que participa e é homenageada na faixa “Marinou, Limou” —, Rita Lee, Sade e Michael Jackson estão entre as referências musicais da carioca. Outra, talvez mais inesperada, é sua mãe, a médica espanhola Regina Mestre. As viagens no carro dela, quando ouvia músicas brasileiras para expandir seu vocabulário em português, marcaram a memória e o estilo musical de Julia: “Minha mãe, por viver num país que não é o dela, também é muito tímida. Então, ela sempre escolheu os livros como seus companheiros, sempre foi uma pessoa de muita leitura. Lembro que quando criança, ela sempre me incentivava e me dava livros. Acho que se eu tenho essa veia de compositora, isso vem muito dela. Minha mãe, claro, é a minha primeira referência”.
A cantora ainda citou Clairo, Ana Caetano, Vitória Falcão e Tasha Sultana como referências de “artistas que também fazem esse 360 da imagem com a música”. “A Cássia Eller também é uma referência que eu falo pouco — devia falar mais —, porque ela me instiga na coisa do timbre, esse timbre de voz que ela canta mais de peito, mais com atitude”, acrescentou. “Ela também sempre foi essa pessoa que fora dos palcos é muito tímida, mas quando está no palco é uma fera. Adoro essa personalidade que você, às vezes, só consegue compreender quando ela está expressando a sua arte.”

Ao longo dos últimos anos, a voz de Julia Mestre sofreu mudanças que ajudaram a moldar sua atual fase musical. Ela viu em um período de “fragilidade na voz” uma oportunidade de explorar sua rouquidão. A cantora contou que foi diagnosticada com um calo vocal — “um pseudocisto, sulco vocal, como se fosse uma feridinha, uma bolha que fica dentro da corda vocal”, explicou. O que parecia um problema virou um meio de se identificar com artistas como Maro, Maria Gadú, Seu Jorge e Ana Carolina, por exemplo, que a atraem pela “coisa mais rouca, mais aerada” na voz. “Isso, que muitas vezes pode ser um defeito de fábrica, acaba direcionando o seu timbre vocal. No início, eu não sabia muito sobre ele, mas fui começando a trabalhar e jogar a favor dessa minha característica. Sinto que fui me interessando e pesquisando mais cantores que também tinham esse tipo de característica.”
Prestes a subir ao palco da Casa, Julia precisava encerrar a entrevista para aquecer a voz, enquanto recebia os últimos retoques de sua equipe de maquiagem e cabelo. Embora ela não tenha se aprofundado nos detalhes por trás dos videoclipes de Maravilhosamente Bem, confessou que é uma grande fã dos filmes de Pedro Almodóvar: “Ele tem os cenários que eu mais gosto, porque conversa muito com as cores. Acho que sempre mergulho em fases. Cada disco tem uma cor. Agora a gente conversa com a fase rosa e azul bebê, mas Arrepiada foi vermelha e jeans”. A artista ainda tentou imaginar as cores que serão destaque no próximo trabalho, mas se conteve: “Não quero me arriscar”.