Marcelo D2: “Eu resolvi falar de uma outra maneira nesse disco, falar de ancestralidade, falar de futuro, falar de onde eu vim”

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Na semana em que rolou o show “Marcelo D2 e Um Punhado de Bamba” aqui na Casa Natura Musical, D2 lançou o single “POVO . DE . FÉ“, a música faz parte do seu próximo disco, chamado “Iboru”. Ao subir no palco da Casa, acompanhado de um grupo de bambas, sambistas, coro e uma estátua de São Jorge, o artista com quase trinta anos de trajetória escancarou uma nova fase de sua carreira e de sua vida, uma fase em que o samba, a fé e a ancestralidade de futuro são reverenciadas. 

O último disco de D2 mostra como sua relação com o samba é circular, o artista fez esse movimento de retomada com o gênero através de um meio de comunicação ancestral crucial para o samba e as musicalidades negras: os tambores. Em “Assim tocam os MEUS TAMBORES” (2020), Marcelo finca os dois pés em suas origens, não à toa o novo disco pretende ser uma continuidade, um caminho de possibilidades pautado nas descobertas do artista durante o processo de criação do disco anterior.

“Os discos anteriores sempre são referência pro próximo, ou pra mudar tudo ou pra seguir o mesmo caminho e abrir um pouco mais as portas, sabe qual é? (…) a música ‘Rompeu O Couro’ abriu um lugar na minha cabeça, foi ali que eu pensei ‘cara, vou atrás dessa sonoridade aí’”, explica.

Marcelo revela que, durante o processo de construção de “Iboru”, suas maiores influências foram o samba de Clementina de Jesus, os saberes de Luiz Antônio Simas e sua grande companheira, Luiza Machado. “Ela me conduziu pra esse lugar, me levou lá pro candomblé, pro Ifá, tá ligado? Ela sempre foi uma pessoa de muita fé, não só de religião, mas fé. Isso acendeu nossa parceria”, afirma. “Iboru Iboya Ibosheshe” é a forma que os praticantes de Ifá se cumprimentam, a religião é fundamentada em um sistema oracular nigeriano com uma complexa tecnologia de comunicação.

Foto: Karoline Leal

 

Casa Natura Musical: Pensando um pouco sobre o que foram as histórias contadas pelo disco”Assim tocam os MEUS TAMBORES”, eu queria que você falasse um pouco sobre as histórias que o disco “Iboru” pretende contar, considerando também toda essa parada da espiritualidade, já que “Iboru” é a forma que o pessoal de Ifá se cumprimenta.

Marcelo D2: É, é “Iboru, Iboya, Ibosheshe” [o cumprimento]. Cara, esses últimos anos foram uma loucura, né? Parece que tinha uma tempestade assim… e eu não estou falando só de política, estou falando de tudo, confinamento e tal. Eu, na minha vida pessoal, perdi minha mãe e, sei lá, acabei me conectando mais com a minha espiritualidade. Acho que esse lugar que o país tá passando, eu queria fazer um pouco parte dessa mudança, dessa retomada. Para mim a esperança é muito importante, sabe qual é? Escrever disco de rap, o Planet Hemp, meus solos… eu sempre vim em uma luta, sempre escrevi em um lugar de confronto, né cara? Eu resolvi falar de uma outra maneira nesse disco, falar de ancestralidade, falar de futuro, falar de onde eu vim, falar de pé no chão, falar de comida, falar de alegria, de esperança. Essa ancestralidade de futuro talvez seja o conceito do disco.

Casa Natura Musical: Tem bastante influência da obra do Luiz Antônio Simas também, né?

Marcelo D2: Cara, as três maiores referências desse disco são a Luiza, minha parceira, ela me conduziu pra esse lugar. A branquinha me levou lá pro candomblé, pro Ifá, tá ligado? Ela sempre foi uma pessoa de muita fé, não só de religião, mas fé. Isso acendeu nossa parceria. O Simas, que é meu parceiro de várias músicas e tal, nesse disco, a gente tem uma música juntos. Ele foi uma referência grande também pelo jeito dele falar, o jeito que ele me fez olhar de novo o subúrbio, de onde eu vim, com esse reencontro e tal. 

E Clementina também, passei a ouvir muito a Clementina e passei a ficar muito tocado, sabe? Com a maneira que ela cantava. A voz da Clementina parece a da minha avó… não parece, mas parece sabe? Poderia ser a voz da minha avó. Essa força dessa mulher, depois que eu perdi minha mãe, foi muito forte. De lembrar da minha mãe, de quando minha mãe cantava e tal. Eu acho que esse disco é sobre isso: ancestralidade de futuro.

Casa Natura Musical: Eu percebo uma linearidade no seu trabalho, em que o tambor é uma forma de comunicação de fato. O “Assim tocam os MEUS TAMBORES” veio em uma pegada de “cheguei! tô voltando pra esse lugar” e agora, nesse seu novo momento, sinto que a espiritualidade está presente de um jeito muito mais forte. Faz sentido?

Marcelo D2: Sim, faz. Total!

Casa Natura Musical: E como isso influenciou a musicalidade do novo álbum?

Marcelo D2: Os discos anteriores sempre são referência para o próximo, ou para mudar tudo ou para seguir o mesmo caminho e abrir um pouco mais as portas, sabe qual é? O “Assim tocam os MEUS TAMBORES” envolve a minha parceria com o Simas, com o Criolo, abriu um lugar… a música que eu fiz com o Kiko Dinucci, com a Juçara, com o BK’, Bacco, Anelis. Essa música, “Rompeu O Couro”, abriu um lugar na minha cabeça que foi “cara, eu vou atrás dessa sonoridade aí”. 

E eu comecei a pensar em como o samba ainda não usa muito os graves do rap, a gente vê o sertanejo usar, a gente vê o axé usar, a gente vê o pagodão da Bahia usar. Quase toda a música pop atual – pop no sentido de estar tocando na rádio, sabe? Ela tem esse grave que vem da cultura Hip Hop, sabe qual é? Esse grave é nosso, quem inventou esse grave foi o rap, tá ligado? Foi a cultura Hip Hop. E eu falei “cara, quero botar esse grave no samba”, basicamente, essa sonoridade é essa, cara. Eu costumo falar que a cultura disso é um soundsystem atrás e uma roda de samba na frente, sabe qual é?

Casa Natura Musical: Pode crer! É um grave diferente do grave do surdo, né?

Marcelo D2: É, é um grave diferente do surdo, é um grave eletrônico, um grave marcante e tal. E os dois conversam bem também, o surdo e a 808, que é basicamente o grave que eu tô falando.

Casa Natura Musical: Percebi uma preocupação em trabalhar a circularidade como princípio. Fiquei observando toda a montagem e configuração do palco durante o show, essa coisa do formato da banda ser circular e, ao mesmo tempo que tinha um telão de led no fundo, com as artes do Herbert, o chão do palco mantinha a configuração de uma roda de samba tradicional, com a mesa no meio, a espada e a estátua de São Jorge em destaque. Qual é a proposta estética que você pretende trazer com tudo isso?

Marcelo D2: Para mim, só música não basta mais, tá ligado? Dá pra gente falar mais sabe? Hoje em dia a gente tem tanto mecanismo pra isso, a internet, o telão no palco… e juntar essas coisas é uma coisa que me fascina. A mesa para mim é muito importante nesse palco, porque a mesa foi onde começou a ideia desse disco todo, comendo uma rabada com os meus filhos. Eu ficava olhando para os meus filhos e pensando “nossa, como é que a gente come essa rabada? com a mão, né cara?” e falei “cara, essa parada é muito ancestral”. E essa coisa da ancestralidade, a ancestralidade não ficou lá atrás, essa ancestralidade é contemporânea, ela tá aqui. Tá no teu cabelo, no jeito de andar, no jeito de falar, isso é ancestral, o fogo é ancestral, sabe qual é? Então tudo isso trouxe a gente até aqui. 

Eu quero fazer isso pra caramba, quero juntar essa coisa da ancestralidade contemporânea, eu quero fazer muita tecnologia. Eu sou filho de Ogum, tecnologia para mim é a parada, sabe? Quero muito propor um samba novo, sem falsa modéstia, que vai do jeito de vestir ao jeito de tocar sabe? Estava falando com Jorge Aragão outro dia que eu quero botar a bateria eletrônica no samba, como venho fazendo há anos, esquentando o samba agora. Quero botar telão para a gente se conectar, conectar com a internet essa ancestralidade… sei lá, me bateu uma certa responsabilidade, sabe? Passei dos 50 e eu falo “cara, agora tá na hora de mostrar um pouquinho do que veio comigo, mostrar um pouquinho do que eu aprendi nesses 30 anos de carreira”, sabe? 

Tá me fascinando muito o audiovisual, já dirigi dois filmes, os clipes. Para esse disco novo eu quero fazer um filme também, com um conto de Clementina, Pixinguinha e João da Baiana, quero fazer um espaço físico pra esse disco novo. Quero criar esse lugar que tá dentro da minha cabeça, colocar isso aqui pra fora e trazer todo mundo aqui pra dentro, sabe qual é? E aí tem o visual, o jeito de vestir, a gente tá fazendo o figurino, combinando tudo.

Esses pequenos detalhes, como você reparou, ajudam a contar uma história. Eu quero que essa história seja contada do timbre da caixa ao vídeo que está lá. Cada detalhe pra mim é importante pra caramba!

Arte de capa do single “P O V O . D E . F É” | Por: Herbert (@artedeft)

 

Texto por: Amanda Figueiredo para a Casa Natura Musical

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