O feminino, as águas e a música brasileira

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Se pararmos para pensar a quantidade de água que apenas uma pessoa consome por dia, calcula-se por volta de 200 a 250 litros. Para puxar uma descarga, gastamos de 10 a 12 litros por vez, para tomar um banho de apenas 2 minutos, consumimos 12 litros, ou seja, 120 litros se o banho for de 10 minutos. Para lavar louça com a torneira aberta por 4 minutos, vão embora 55 litros de água. Uma lavagem de roupa na máquina gasta em média 135 litros de água.

Isso sem contar a água utilizada pelas fábricas e indústrias do mundo, que corresponde à cerca de metade da água consumida no país e à agricultura, que consome 69% da água doce do mundo todo. Não bastasse o enorme consumo de água por todos os setores da sociedade, o recurso mais importante da Terra continua sendo contaminado e poluído, gerando a extinção de espécies aquáticas e a morte de milhões de pessoas, principalmente de países pobres. Segundo a ONU, cerca de 2,2 bilhões de indivíduos sofrem da falta de água potável e 4,2 bilhões não têm acesso ao saneamento básico. No Brasil, quase metade da população – 100 milhões de pessoas – não possui acesso ao sistema de esgoto sanitário e 35 milhões de pessoas não têm acesso à agua tratada, segundo a SNIS.

Rainha de Copas no deck do Afro brazilian Tarot

O recurso natural da água está em risco, é fato. Por isso, em 1992 a ONU declarou o dia 22 de março como o Dia Mundial da Água, para que cada país promovesse ações de conscientização da conservação e do desenvolvimento dos recursos hídricos.

Além de ser uma preocupação social e de saúde pública, a água abrange uma dimensão cultural e simbólica em todas as sociedades ao longo da história das civilizações. O primeiro filósofo do Ocidente, Tales de Mileto já dizia “tudo é água”. Ou seja, é a partir desta substância que surgiriam todos os elementos e seres vivos na Terra. Na tradição judaico-cristã, a água simboliza a origem da criação, a mãe, a fonte de todas as coisas. 

Para a simbologia do tarot e da astrologia a água é relacionada à polaridade yin, traduzida como energia “feminina” (que está dentro de todes, independente do gênero), por sua característica receptiva, sensível, emotiva, fértil, purificadora e regeneradora. O naipe de copas, correspondente ao elemento água, pode ser simbolizado pela taça ou pelo coração.

A lua, regente do signo de câncer e associada ao elemento água, é o astro que atua na dança das maré dos oceanos. Além de agir sobre as águas da Terra, as fases lunares influenciam e favorecem as energias pessoais, sendo relacionadas também aos ciclos menstruais e aos líquidos do corpo que regem as nossas emoções. Nas religiões afro-brasileiras, orixás femininas representam a maternidade das águas. Nanã é a senhora das águas paradas, Yemanjá, mãe das águas salgadas e Oxum, mãe das águas doces. 

A música brasileira está repleta destes simbolismos e outras metáforas sobre o significado das águas em nosso imaginário. Maria Bethânia pergunta: “Quanto nome tem a rainha do mar? Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Yemanjá” (Iemanjá Rainha do Mar), Mariene de Castro narra: “Oxumarê me deu dois barajás pra festa de Nanã, a velha deusa das águas” (Ponto de Nanã). As águas do mar invadem Mc Tha: “Flutuo nesse vazio mas a tristeza é oceano raso. E quando eu tocar o chão vou levar todos pra baixo” (Oceano). Adriana Calcanhotto declara: “A minha terra é o mar” (Príncipe da Marés) e Luedji Luna pronuncia: “Você maremoto, você maré mansa, você poça d’água”. Ouça as músicas no final do post!

Em muitas sociedades, inclusive a nossa, é atribuída às mulheres a responsabilidade pelo manuseio da água como recurso para a higiene e alimentação da saúde da família. Paradoxalmente, as posições de poder tanto nas indústrias, quanto nos governos, que determinam o uso adequado da água e as medidas de saneamento, não são ocupadas, em sua maioria, por mulheres.

Coincidência ou não, o mês de março inclui tanto o Dia Internacional da Mulher, quanto o Dia Mundial da Água, dois simbolismos tão frequentemente relacionados no imaginário cultural e religioso, e, na materialidade, tão carentes de amparo. Por um lado as mulheres do mundo todo, em suas interseccionalidades, lutando por direitos básicos como o acesso a salários igualitários, contra o feminicídio e a violência obstétrica e doméstica, pelo equilíbrio na divisão das tarefas de casa e contra os preconceitos de raça, gênero e sexualidade. Por outro lado, o recurso hídrico sendo mal distribuído, poluído e com a iminência de se esgotar para sempre. 

Se quisermos mudar o curso do rio, tanto em relação às violações aos direitos das mulheres, quanto do acesso à água e a preservação do patrimônio simbólico que ela representa para nossa sociedade, temos que saber: a responsabilidade é de todes nós.

Para ler mais sobre os simbolismos das águas, acesse os artigos:

A água e a vida, de José Carlos Bruni

Água em três movimentos: sobre mitos, imaginário e o papel da mulher no manejo das águas, de Loreley Garcia

Ouça a nossa seleção de músicas:

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