“Ninguém vai poder querer nos dizer como amar” é o verso de um dos hinos que marcaram a livre expressão do amor e da diversidade nos últimos anos. Mas você já se perguntou o que os artistas que vieram bem antes tiveram que passar para que Liniker e Johnny Hooker pudessem cantar Flutua em 2017 e também para que muitos outros cantores, compositores e intérpretes da comunidade LGBTQIA+ pudessem existir e resistir atualmente? É o que investiga Renato Gonçalves, o autor de dois livros sobre como a questão LGBTQIA+ aparece na canção brasileira.
O primeiro, “Nós Duas – As Representações LGBT na Canção Brasileira”, lançado em 2016, Gonçalves percorre trinta canções entre as décadas de 1970 e 2010, para discutir sobre temas como censura e linguagem, marginalização do corpo, o público e o privado no show biz, entre outros, a partir da representação de amores e desejos lésbicos, gays, bissexuais e de corpos trans e travestis. O título, “Nós Duas”, foi inspirado nas letras de “Bárbara”, de autoria de Chico Buarque e Ruy Guerra, que teve o trecho que explicitava uma relação amorosa lésbica censurado em 1973 durante o regime militar, e em “Lizete”, de autoria de Kiko Dinucci e Jonathan Silva, gravada por Ná Ozzetti em 2013, que diz: “Mãe, vou me juntar com a Lizete, mudar pra sua quitinete ali no bairro do limão. Então nós duas ouvindo disco na vitrola, de Chales Mingos à Cartola do jeito que você falou, mamãe”.
No segundo livro, “Questões LGBT e música brasileira ontem e hoje” , lançado em 2020, Renato Gonçalves reúne nove textos sobre música popular brasileira e estudos de gênero e sexualidade, trazendo exemplos desde artistas da nova cena da música brasileira, como Liniker, Linn da Quebrada, Thiago Pethit, As Baías, até nomes que despontaram nas décadas de 1960 e 1970, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tuca.
Entre as artistas mais citadas no primeiro livro está Marina Lima, que dá uma nova dimensão lírica para a canção “Mesmo Que Seja Eu”, gravada inicialmente por Erasmo Carlos no disco Amar pra viver ou morrer de amor (1982) e retomada por ela no LP Fullgás (1984), subvertendo a heteronormatividade expressivamente.
Uma outra cantora e compositora, citada em ambos os livros, é Tuca, uma pioneira da representatividade LGBT da década de 1970, que foi apagada pela história e pela censura. O autor conta que “Pouca gente sabe, mas Tuca foi uma importante cantora e compositora brasileira. (…) Em 1974, Tuca lançou aquele que seria seu último trabalho, o LP Drácula, I love you. Nesse disco, as canções tratam do amor de maneira transgressora. Sua maior transgressão, para além da abordagem agridoce empregada em algumas canções, foi ter assumido um discurso homossexual. Sem dúvidas, a mais emblemática nesse sentido é “Girl” (Prioli/Tuca), na qual o eu lírico faz um convite a outra mulher.”
Renato Gonçalves relaciona a personagem Geni, da peça Ópera do Malandro (1978), de Chico Buarque, que ficou famosa pela canção “Geni e o Zepelim”, à figura da música “Benedita” (Celso Sim/Pepê Mata Machado/Joana Barossi/Fernanda Diamant), gravada por Elza Soares e Celso Sim no álbum A mulher do fim do mundo (2015), expondo a questão da marginalização dos corpos e da violência e preconceito sofridos pelas pessoas trans e travestis no Brasil, enquanto o país que mais mata pessoas vinculadas à estas identidades.
Por fim, no livro “Nós Duas”, o autor comenta que “curiosamente, uma das canções mais atribuídas aos movimentos LGBT não traz necessariamente uma representação LGBT. Não traz personagem, eu lírico ou narrador LGBT. Não fala de algum gênero ou orientação sexual que conteste a heteronormatividade.” Tal canção se trata de “Paula e Bebeto” , de Caetano Veloso e Milton Nascimento, gravada em 1975, no LP Minas. A música traz o famoso verso, que se tornou um hino da diversidade, ao dizer:
Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor vale amar
Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor valerá
O livro “Nós Duas – As Representações LGBT na Canção Brasileira” está disponível gratuitamente no link: https://bit.ly/nosduasLGBT
“Questões LGBT e música brasileira ontem e hoje” pode ser acessado pelo site da Amazon.
E quem quiser ouvir as músicas citadas no primeiro livro, pode acessar a playlist: