Cantora carioca-paulistana evoca Ogum em “Crash”, rap composto por Rodrigo Ogi e primeiro single do disco ‘Delta Estácio Blues’. Em seu segundo trabalho solo, a artista une berço do samba, cacofonia e bases eletrônicas em álbum co-produzido com Kiko Dinucci.
E se Robert Johnson, um dos pioneiros do blues e importante referência para a padronização do seu formato de doze compassos, no lugar de ter feito pacto com o Diabo para deixar de ser um músico medíocre e se tornar um mestre da guitarra, como reza a lenda que rendeu até documentário da Netflix, tivesse feito um pacto com Bide, Baiaco e Ismael Silva, os três malandros do morro do Estácio, berço do samba carioca?
É essa situação que o músico Rodrigo Campos imagina em “Delta Estácio Blues”, faixa que dá título ao segundo disco solo de Juçara Marçal, cujo lançamento está programado para o dia 30 de setembro. “Fiquei muito tempo tentando encontrar algum nome que desse conta da ideia que o disco passa: de ser um álbum eletrônico mas, que ao mesmo tempo, conversa com outros eixos de música negra: o samba, o blues, o jazz, o rap e os funks antigos”, explicou Juçara, em entrevista à Casa Natura Musical.
Hoje, dia 2 de setembro, a cantora carioca radicada em São Paulo disponibiliza o primeiro single inédito do novo trabalho, Crash, composto pelo rapper paulistano Rodrigo Ogi e co-produzido por Juçara e Kiko. Aludindo a Ogum, orixá da guerra, a letra da música descreve uma briga física entre um homem brutamontes contra uma mulher à la Beatrix Kiddo (Kill Bill), que leva a melhor.
Na faixa, Juçara Marçal, conhecida por suas interpretações de canção, aparece rimando. Ela, que já colaborou com rappers como Emicida, Marcelo D2, Criolo e o próprio Ogi, mas sempre dando voz a refrãos melódicos dos raps, se arriscou a rimar pela segunda vez na vida — a primeira, foi quando gravou um cover de “Negro Drama”, dos Racionais MC’s, no disco Ser Tão Paulista (2004), de quando era integrante do grupo Vésper Vocal.
Delta Estácio Blues traz uma Juçara eletrônica. Junto com Kiko, a artista explora outros recursos de sonoridade para além da guitarra e do violão distorcidos do Passo Torto — principal referência sonora para o seu primeiro disco solo, Encarnado (2014) — ou do punk jazz afrobrasileiro do Metá Metá e do samba torto do Sambas do Absurdo — três projetos musicais que pelo menos um dos dois também integram.
Fissurados pelos beats sombrios e ruidosos de Atrocity Exhibition, álbum de 2016 do rapper de Detroit (EUA), Danny Brown, Juçara e Kiko se debruçaram em uma sampler SP-404 para criarem os instrumentais das 11 faixas do novo trabalho. Samples de discos de vinil de black music antigos, ruídos de porta, barulhos de privada, entre outros sons estranhos, costuraram a sonoridade cacofônica de Delta Estácio Blues e serviram de base para as composições de Rodrigo Ogi, Tulipa Ruiz, Negro Leo, Ogi, Rodrigo Campos, Douglas Germano, Maria Beraldo, Siba Veloso, Rodrigo Catatau e dos próprios Juçara e Kiko — todas interpretadas magistralmente pela cantora. Além das gravações inéditas, o disco também traz dois covers: o de “La Femme à Barbe” (Brigitte Fontaine) e “Oi, Cat” (Tantão e os Fitas).
Para além da interpretação, Delta Estácio Blues (Natura Musical/QTV Selo) é o trabalho que mais exigiu de Juçara Marçal como compositora. Enquanto em Encarnado (2014), ela, que se define como “compositora bissexta”, assina somente a composição de “Odoyá”, no novo álbum, Juçara é creditada como co-compositora em seis das onze faixas. “Fui acionada em várias frentes como compositora nesse álbum: ora de letra, ora de melodia. Meu lado compositora evoluiu um pouquinho nesse tempo”, explicou Juçara. “Também me sinto meio produtora do disco. Apesar de o Kiko ser o arquiteto, eu estive o processo inteiro ali do lado, como uma co-piloto”.
Se no Encarnado, a temática das canções giram em torno da Morte e da finitude do Homem, em Delta Estácio Blues, a unidade do disco é dada pela ambiência dos samples e dos “zigue-zagues” feitos com o som. “Algumas músicas que estariam nesse disco acabaram não entrando, porque não ficou fluído no resultado final. E a gente precisa respeitar o tempo da canção”, comenta.
No campo temático, o disco remete a imagens que vão desde o Reis Malunguinho do maracatu e da ciranda da Zona da Mata pernambucana presentes em “Vi de Relance a Coroa”, (Siba Veloso); passando pelo próprio morro do Estácio e o encontro do blues com os malandros do samba na faixa-título (Rodrigo Campos); até à excursão de paulistanos ao litoral caiçara contemporâneo nos feriados em “Corpus Christi” (Douglas Germano). “Apesar de ser um disco da Juçara Marçal, ele tem a personalidade muito viva de cada uma das pessoas que participou”, analisa.
Contemplado pelo edital Natura Musical 2020, o Delta Estácio Blues vem sendo produzido desde 2017, nos intervalos de tempo dos outros projetos de Juçara e Kiko. A pandemia, o cancelamento dos shows e o incentivo financeiro forçaram os músicos a acelerarem a gravação do disco, que se deu majoritariamente em casa.
Na entrevista abaixo, Juçara Marçal discorre sobre as reverberações da tradição e da vanguarda no cacofônico Delta Estácio Blues e sobre o EP, ainda sem nome, que prepara para lançar em janeiro de 2022 com faixas remanescentes desse trabalho, compostas por Jadsa, Alzira E e Clima. Também conversamos sobre o papel da canção no século 21, a morte do crítico e historiador musical José Ramos Tinhorão, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e o apagamento do vanguardismo do samba do Estácio. Leia abaixo:
Casa Natura Musical: O Encarnado foi lançado em 2014 e foi muito bem recebido pela crítica e pelo público. O Delta Estácio Blues sairá mais de sete anos depois do primeiro disco, tempo que é considerado longo para algumas pessoas dentro da dinâmica de lançamentos musicais na era do streaming. Você sentiu alguma pressão para o lançamento de um segundo trabalho solo?
Juçara Marçal: Não diria que teve pressão para o segundo disco. Como a gente faz tudo de maneira independente, como diria Itamar Assumpção, “Às Próprias Custas S.A.“, pressão propriamente, não teve. Assim, as pessoas perguntam, né? “E aí, e o ‘Encarnado 2’?”. Mas nada que me deixasse preocupada. Fui maturando esse segundo disco de uma maneira bem tranquila.
Para você ter uma ideia, comecei a pensar nesse segundo trabalho em 2017, sem nenhuma pressa. Porque precisávamos pesquisar o jeito de fazê-lo. Em 2017, a gente não sabia onde essa pesquisa ia dar. Só tínhamos a ideia de pensar nessas bases [instrumentais] que viriam de cacos de um monte de coisa.
CNM: Como assim cacos?
JM: Caco no sentido de “samples”. As bases são todas feitas em cima de samples de várias coisas: um pedaço de um baixo de uma música ali, um barulho de porta, um riff de guitarra… Tem até uma base em que a gente usou um barulho de privada. Ouvimos um “plin” e pensamos “nossa, que som legal”, aí gravamos e incorporamos. Fomos juntando esses vários samples e o resultado deu nas bases instrumentais das músicas.
Acho que o processo de produção do disco foi lento por ter sido uma maneira de trabalhar muito nova pra gente. Dedicamos bastante tempo a experimentar possibilidades sonoras e de construção de canções.
Também foi lento porque nós o fazíamos nas brechas de tempo dos shows do Metá Metá, da produção do disco solo do Kiko, do Sambas do Absurdo, entre outros vários projetos nossos.
CNM: Dos seus projetos, esse é o mais eletrônico até agora.
JM: Total. Eu e Kiko estávamos muito encantado com o disco do [rapper estadunidense] Danny Brown, Atrocity Exhibition (2016). É maravilhoso o trabalho dele com as bases das músicas ali. Além do flow absurdo dele, o álbum tinha essa particularidade de procurar sons não-usais para as bases das músicas. Foi essa um pouco a inspiração do processo de criação do Delta Estácio Blues.
Nas duas primeiras faixas, eu ouvi um pouco de glitch [“falhas eletrônicas”] nos beats, que deu um efeito de cacofonia, de estética de “erro”. Queria que você comentasse um pouco sobre isso.
Kiko Dinucci: No começo das gravações do disco, a gente usou um sampler que talvez tenha dado esse efeito. É da marca Pocket Operator, chama KO. E ele tem uma função que a gente gravava uns dez segundos de músicas e ele recortava tudo aleatoriamente. Retalhava a música, deixava cheio de rebarbas.
Juçara Marçal: Quando a gente passava pro grid [na plataforma de edição], ficava esse “tequinho” sobrando. Se fossemos editar rigidamente, teríamos que cortar essa “sobra”, mas gostamos justamente desse efeito de cacofonia. E acho que é uma das características mais interessantes da sonoridade desse disco: a de brincar com esse “zigue-zague” que o som pode ter.
Kiko Dinucci: Tiveram duas faixas em que usamos muito esse sampler: “Sem Cais” (Negro Leo / Juçara Marçal / Kiko Dinucci) e “Ladra” (Tulipa Ruiz). Depois, começamos a usar o sampler SP404.
Em “Vi de Relance a Coroa” (Siba), tem umas baterias meio com uns rufos de caixa de trap, feitas pelo Cadu Tenório, que fez lá, do jeitinho dele. Esses retalhos de bateria conversaram com esses detalhes também. Mas foi tudo inconsciente, culpa do KO.
CNM: O nome do disco vem de uma referência ao Mississipi Delta Blues, que surgiu no começo do século 20 e é considerado uma das primeiras manifestações de blues nos Estados Unidos. Como você chegou nesse nome?
JM: É o nome da faixa feita em parceria com Rodrigo Campos, que compôs a letra e fez a melodia da música. Mas esse nome só foi virar o nome oficial do disco, tipo, semana passada. Não foi nada pensado lá atrás [risos].
Fiquei muito tempo procurando algum título que desse conta de esse ser um disco mais eletrônico e de todo esse processo de produção. Pensei em vários nomes que pudessem sintetizar essa ideia, mas tudo parecia meio forçado, sabe? Ou não soava bem ou não dava conta de tudo.
Um dia, fiquei pensando sobre a letra da canção do Rodrigo. Na faixa “Delta Estácio Blues”, ele conta sobre esse possível encontro do Robert Johnson com os malandros do Estácio [bairro do Rio de Janeiro, berço do samba carioca]. Fiquei pensando sobre como essa junção hipotética simbólica dá conta da ideia que o disco passa, porque trabalha com esses dois eixos: do samba, esse gênero tão simbólico na nossa música popular, mas se valendo da base do rap, do jazz, dos discos de funk antigos.
“Delta” vem da geografia, de quando o rio desemboca no oceano em duas ou mais foz, formando um triângulo. Achei que tinha a ver, pensando nesses dois “braços” da música, o blues e o samba. Compartilhei com o Kiko o nome e ele falou: “nossa ainda por cima [Delta] é o nome dessa variante [da Covid-19]”. Eu falei: é isso! Esse é o nome da conta de tudo: da sonoridade e do momento que a gente tá passando.
CNM: E são dois eixos de música negra, né? Tanto a música negra brasileira, quanto a estadunidense.
JM: Sim. Pra mim, é uma coisa só. Quando penso em Estácio, pra mim, é a música negra brasileira. Foi uma música que se expandiu para todo o Brasil, mas são aqueles caras lá. É aquele jeito de pensar, aquela procedência. E Robert Johnson também. Então, é sempre música negra, sem dúvida.
CNM: Sobre os compositores, como as canções foram entrando no disco?
JM: A gente fazia as bases das músicas. E aí, várias delas lembravam alguém por conta de alguma coisa da base que tinha a ver com aquela pessoa. Por exemplo, “Lembranças Que Guardei”, a música em que o Fernando Catatau fez parceria, era uma base muito louca em cinco tempos. Um maracatu muito maluco, meio torto, que nem sei se a gente pode chamar de maracatu. Não sei por que tinha alguma coisa ali na melodia que achei que tinha a ver com Catatau. Aí, a gente convidou o Catatau para fazer compor e ele topou. Acabou que ele fez o arranjo inteiro da música, que ficou muito a cara dele, mas ao mesmo tempo conversa totalmente com o disco.
Funcionava sempre assim. A gente fazia a base e pensava: “nossa, essa aqui tem a ver com Alzira Espíndola”. Aí, a gente mandou pra ela compor em cima. Outra, era a cara do Rodrigo Ogi, aí enviamos pra ele. E assim foram surgindo as parcerias.
Só em “Vi de Relance a Coroa” (Siba Veloso) e em “Ladra” (Tulipa Ruiz) que o processo foi o inverso: o Siba e a Tulipa deram as músicas pra gente, letra e melodia, para usarmos no disco. E “La Femme à Barbe” (Brigitte Fontaine) e “Oi, Cat” (Tantão e os Fitas), que são covers de músicas as quais eu já tocava no meu show em homenagem à [cantora francesa vanguardista] Brigitte Fontaine.
Convocamos muitos amigos. Algumas músicas acabaram nem entrando no disco, por questões de direito autoral do sample ou a sonoridade da base, no final, acabou não conversando com o desenho do disco geral.
CNM: Ouvindo o Delta Estácio Blues, senti que, apesar de ser um disco seu, da Juçara Marçal, as composições acabaram refletindo muito a personalidade dos compositores.
JM: Você matou a pau. É exatamente isso. A unidade do disco é dada por pelas bases instrumentais que fomos construindo, mas ao mesmo tempo tem a personalidade muito viva de cada uma das pessoas que participou. No caso do Siba, era uma canção anterior dele mesmo. Mas a do Catatau, por exemplo, é a cara dele. A da Tulipa também me passa muito essa sensação.
CNM: Falando agora sobre o single, Crash, que foi composto pelo Rodrigo Ogi. Você já tinha trabalhado com outros rappers, e até mesmo com o próprio Ogi, mas sempre cantando refrão, né? Mas em Crash, você chega rimando. Como foi assumir esse papel?
JM: Na verdade, já tinha interpretado um rap anteriormente. Quando eu fazia parte do grupo Vésper Vocal, nós gravamos um disco chamado Ser Tão Paulista (2004). Era um disco que trazia compositores de São Paulo de todas as vertentes e que comemorava os 450 anos da cidade. Pensei que tinha que ter Racionais MC’s, mas não sabia como incluir uma música deles no repertório. Nem era a época do “lugar de fala” em pauta, só que sentia que não tinha muito a ver eu cantar um rap deles.
O nosso disco estava quase para ser lançado e aí os Racionais lançaram o disco que tem “Negro Drama” (Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, de 2002). Eu ouvi e pensei: “Essa, eu consigo cantar”. Então, essa foi a minha primeira experiência com rap. Depois, colaborei com o Criolo (na faixa “Fio de Prumo [Padê Onã], de 2014), com Emicida (“Samba do Fim do Mundo”, de 2013), Marcelo D2 (“4ª às 20h”, de 2020) e com o próprio Ogi (“Correspondente de Guerra”, de 2015), em todas cantando refrão.
Eu não sou rapper. Tanto em “Negro Drama” quanto em “Crash”, a minha experiência foi de intérprete. Então, esse single foi um desafio. Ainda mais interpretando um rap do Ogi, que o flow é uma metralhadora. Estamos preparando o show e estudando como vamos fazer pra manter a energia da música no ao vivo.
E rap é meio fora da curva, do ponto de vista da interpretação. Porque essa coisa o tempo todo falado, mas é um falado em um ritmo que eu não tô acostumada a usar. Tem o ingrediente do flow também, que acrescenta outra camada à música, além da acentuação na última sílaba das palavras, que dá uma polirritmia muito legal.
CNM: A letra de Crash traz a cena de uma briga, uma luta de uma mulher contra um cara brutamonte. Como ela surgiu?
JM: Essa base, desde a primeira vez que ouvimos o resultado, nós pensamos que tinha que ser do Ogi. Mas antes de mostrarmos pra ele, nós a compartilhamos com o nosso amigo Rodrigo Brandão. Brandão pirou nessa base e chegou a sonhar com a música e, no sonho, apareceram pra ele imagens de colisão, de coisas sendo destruídas, de Ogum. Contamos para o Ogi, que, de certa forma, incorporou esse “briefing” do Brandão na letra.
A gente deu o nome da música de “Crash” meio que em homenagem ao Brandão, porque foi uma das primeiras coisas que ele falou sobre o que tinha imaginado sobre a música.
CNM: Falando agora sobre Oi, Cat, eu queria saber por que você acabou escolhendo ela pra entrar no disco e por que sua voz aparece mais grave, mais “masculina”, nesse cover?
JM: A gente acabou incluindo porque também tinha a ver com a linguagem eletrônica do disco. No meu show em homenagem à Brigitte Fontaine, além de tocar o repertório dela, eu também incluí outras músicas. Nesse show, tinha música do Romulo Fróes, do Clima, do Itamar Assumpção, do Douglas Germano, do próprio Kiko. E tinha essa do Tantão, que a gente tocava nessa sequência do disco: logo depois de “La Femme à Barbe”, da Brigitte.
E aí, no final do show, com todos esses elementos incríveis que o compunham, as pessoas saíam cantando “Oi, Cat” [risos]. É uma música muito divertida. Até hoje, tenho amigas que só me cumprimentam desse jeito. Nessa época, em 2017, eu tava muito encantada com esse disco do Tantão e Os Fita, Espectro (2017), por isso coloquei no show.
Sobre a voz, é uma brincadeira que fazemos com o pedal para tentar chegar no jeito da voz dele, mas de uma outra maneira. No show, era muito engraçado. As pessoas ficavam pensando “o que aconteceu ali com aquela mulher?”. Até por isso, acho ela marcante.
CNM: Vocês terminam o disco com “Iyalode Mbé Mbé”, uma adaptação de um oriki (gênero de literatura oral iorubá) para Oxum. Por que a escolha desse oriki?
JM: Combinava com a melodia. Só fiz uma adaptação de alguns versos para caber na melodia, mas ele está quase intacto. Oxum é a Mãe Senhora, que dança e traz fartura. Tinha a ver fechar o disco com ela.
CNM: E acabou que foi a formação do Metá Metá nessa música, né? Além de você cantando, o Kiko no synths e o Thiago França tocando sax.
JM: Foi uma finalização interessante, né? Desde o começo, pensamos em chamar o parceiro Thiagão para tocar o sax. (Risos).
CNM: Ano que vem, se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Você, quando fazia parte da banda A Barca, grupo que pesquisa gêneros de música tradicional no Brasil, fez a trajetória folclórica de Mário de Andrade.
JM: Na verdade, a gente se inspirou na trajetória do Mário de Andrade, mas não fez exatamente o trajeto dele. Foi mais ou menos inspirado no que ele fez ali passando pelo nordeste e tal. Algumas coisas bateram, mas não tudo. Mas a inspiração é o Mário, com certeza. A gente começou toda a pesquisa a partir dos documentos do acervo do Centro Cultural. Daí surgiu a ideia de viajar e não só ouvir e pesquisar aqui a partir de livros e áudios, mas ir aos lugares ver como a música acontecia lá.
CNM: Pensando no centenário da Semana de 22, como você acha que reverbera esse movimento ainda na cena artística hoje? Você acha que a gente superou o Modernismo?
JM: Acho que é importante pontuar, e é uma discussão que muitas pessoas vêm trazendo recentemente, é que sim, a Semana de 22 foi um movimento muito importante, óbvio, mas que não podemos esquecer que foi um movimento essencialmente branco e representa só uma fatia da cena artística de São Paulo e do Brasil. O movimento do morro no Estácio, do samba no Rio de Janeiro, era concomitante a essa época e apresentou outras invenções artísticas que talvez não estejam tão consideradas no histórico artístico brasileiro, mas que têm igual ou até maior importância e não são lembradas com a devida importância.
Sobre “superar” o Modernismo, acho que, nos anos 1920, havia um cenário muito favorável para que a produção artística fosse vista de uma maneira mais centralizada. O local geográfico onde as coisas aconteciam era muito importante para a arte ser mais visível e mais possível de fazer funcionar. Por exemplo, o Rio de Janeiro como capital no começo do século 20 é o lugar onde os fonogramas vão ser feitos, então tem todo um cenário facilitador do centro como o lugar onde estão surgindo as ideias.
A gente tá num momento agora que esse centro não é tão delimitado, tá tudo mais pulverizado, por causa do domínio da Internet e das relações via redes sociais. O que acontece no Pará tem igual importância ao que acontece no Rio Grande do Sul. Fica mais difícil de se pensar em superação, quando não se tem um centro definido. Não dá para pensar num sentido evolutivo. Acho que não seja por essa via.
CNM: Em 2004, o Chico Buarque deu aquela clássica entrevista à Folha de S. Paulo, revelando uma angústia dele sobre a perda de sentido da canção no século 21. Você, como uma artista integrante de uma cena musical que tá pensando e desconstruindo a canção o tempo todo, o que pensa sobre isso? Qual você acha que é a função da canção hoje?
JM: Sobre a morte da canção, eu lembro do Luiz Tatit (Grupo Rumo) comentando essa afirmação. Ele falava assim: “Enquanto as pessoas falarem, a canção não vai morrer”. Porque é isso: a canção parte de você falar, de você construir frases e isso não morre nunca. É uma fonte inesgotável.
Sobre a função da canção, pra mim, a Vanguarda Paulista é muito inspiradora, junto com o Estácio, no ponto de vista de pegar a canção, esse material artístico, e se debruçar com o objetivo de inventar algo e não simplesmente reproduzir aquilo que já é aceito. É experimentar possibilidades. Se debruçar na canção e achar jeitos de fazer ela florescer, no momento e no lugar em que você estiver.
CNM: Em agosto deste ano, faleceu o crítico e historiador de música brasileira José Ramos Tinhorão, controverso, polêmico e muito criticado por causa de suas posições contrárias à bossa-nova e à invasão da música estrangeira no Brasil. Vi que você compartilhou no seu Twitter uma análise do jornalista GG Albuquerque favorável a Tinhorão. Por que você acha que Tinhorão foi tão execrado e qual a importância de revermos o nosso olhar sobre o trabalho dele?
JM: Acredito que as pessoas pegaram aversão a ele muito por conta do jeito ranzinza. Mas acho que esse jeito ranzinza vem muito pelo Tinhorão perceber o tanto de música, de manifestações artísticas brasileiras e que ninguém tava dando devida atenção e também de uma preocupação dele em preservar essas manifestações.
E o trabalho dele não é simplesmente algo que dê para ser esquecido. É um arsenal impecável e profícuo sobre a história da música brasileira, especialmente a música negra e tradicional.
CNM: Você começou a estudar Matemática e largou. Depois foi pro Jornalismo e pra Letras. Por muito tempo, se revezou entre dar aula e cantar. É algo que te incomoda ter conseguido começar a viver de música só depois de uma certa idade?
JM: Acho que não. Porque foi o jeito que deu para fazer, sabe? Não sei o que teria sido da minha trajetória na música se lá atrás eu não precisasse me preocupar em trabalhar em outras frentes. O que acontecia: eu não percebia como possibilidade de ser profissional de música, né? Isso na verdade é um quadro que é recorrente em várias camadas da sociedade, várias pessoas que sequer enxergam a possibilidade de ser profissional de música.
Quando fui estudar Matemática, pensava em ser analista de sistema para ganhar dinheiro, resolver a questão financeira da família e porque eu achava que música não era pra mim. Acabou que não deu certo. Entrei num coral na mesma época e percebi que me sentia mais feliz no coral. Depois, entrei no Jornalismo e na Letras quase ao mesmo tempo e ser professora foi como eu fui me sustentando. Só pedi demissão do meu trabalho de professora depois do lançamento do Encarnado, em 2014, quando ganhamos o Prêmio Governador do Estado, que é um prêmio financeiro, e comecei a me sustentar só com a música.
Mas reclamar, acho que não dá pra eu reclamar. O fato de eu ter feito o trajeto assim me dá características de cantora que talvez não tivesse se, desde o início, tivesse tido todas as possibilidades. Acho que o trajeto define quem você é como artista, vai moldando seu olhar. Talvez eu não tivesse a percepção para várias coisas que tenho hoje se eu tivesse percorrido um caminho diferente. E as coisas que percebi nessa caminho, eu as acho muito importantes hoje. Então, foi um percurso interessante, que me dá orgulho.
CNM: Você sente alguma angústia pelo fato de o seu trabalho estar dentro de uma bolha?
JM: Angústia, não. Acho que é legal sempre que mais pessoas ouçam a minha música, mas não baseio o meu trabalho nesse objetivo. “Ah, agora vou fazer um disco porque eu quero que o Brasil inteiro me conheça”. Não é esse o objetivo. Se conhecer, lógico que eu vou curtir, mas não é onde eu me inspiro para fazer o disco. Até porque mas eu não consigo
pensar estrategicamente para alcançar públicos. Não é uma coisa que eu saiba fazer na verdade, sabe?
CNM: E você tá planejando um EP pra começo do ano que vem, é isso?
JM: Sim! Serão quatro músicas que acabaram não entrando no disco. A princípio, eu queria que todas entrassem, mas algumas acabaram caindo porque não ficaram tão fluídas na historinha que estava sendo contada em Delta Estácio Blues. E a gente precisa respeitar o tempo da canção. É uma parceria com a Jadsa, outra com a Alzira E, outra com o Kiko e o Rodrigo Campos e, por último, uma com o Clima.
#Goma é a nova publicação mensal online da Casa Natura Musical que vai perfilar artistas independentes da nova cena musical brasileira que você deveria parar para escutar. É um projeto multimídia com vídeos, ensaio de fotos, textos, pocket show e playlist musical, que são divulgados ao longo do mês, para você imergir dentro do universo des artistes escolhides.
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