Entrevista: Tássia Reis tá na pista

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Com “Próspera D+”, a cantora paulista dá fôlego dançante a seu último disco e dribla a dinâmica de produção em massa da era do streaming. 

Fotos: Lucas Hirai e Felipe Inácio. Design: Oscar Nunes

Quantos discos você ouviu desde que a pandemia se instaurou e nos impossibilitou de consumir música ao vivo? Algumas dezenas? Talvez tenha chegado ao número das centenas? O número não importa muito, mas, você, ao longo desses quase dois longos anos de isolamento social que estamos (ou estávamos?) vivendo e a consequente virtualização de 90% das nossas relações, com certeza também deve ter se pegado perdido (a) no montante de conteúdo novo — e música nova — disponibilizado todos os dias na Internet. Para mim, como ouvinte, foi difícil acompanhar os lançamentos desse período conturbado e me debruçar sobre eles com o afinco necessário. Apesar de muitos bons discos lançados logo antes e/ou depois de março de 2020 terem me feito companhia durante o apocalipse pandêmico, ao mesmo tempo, muitos bons discos caíram no esquecimento por aqui — fator que, particularmente, atribuo à impossibilidade da sua materialização em um show presencial. Eu, como uma millennial mezzo analógica, mezzo digital, senti falta de “experenciar” a música na pista. 

Uma saída que Tássia Reis encontrou para não deixar Próspera, seu disco de 2019, cair no esquecimento num mundo sem shows foi imaginar uma pista imaginária e arquitetar Próspera D+ (2021), disco de remixes do seu trabalho anterior. Ao invés de “descartar” o disco anterior e ceder à pressão da era dos streamings por música nova toda sexta-feira, Tássia resolveu ouvir seus fãs, driblar o sistema e esticar a vida útil de seu último (e ótimo) lançamento.  

Mesclando remixes de “Preta d+” (prod. TH4I), “Próspera” (prod. TH4I),  “Dollar Euro” (part. Monna Brutal,  EVEHIVE)  e um segundo remix de “Shonda” (part. Urias, Preta Ary e EVEHIVE) com as canções inéditas “Me Beije” (part. Nelson D), “ Dia Bom” (part. Tulipa Ruiz e Theo Zagrae) e “Bêbada de Feriado”, Próspera D+ é uma versão turbinada de Próspera, com produção formatada em beats influenciados pelo afrohouse, batuque, funk, vogue beat e trap.

“Esse disco vem trazendo uma vontade louca de dançar e viver, pelo menos é assim que eu me sinto agora. Espero que esse disco acompanhe vocês e seja trilha de momentos melhores”, disse a cantora nas suas redes sociais.

Conversamos com Tássia sobre o disco novo, movimento body-positive, auto-aceitação, dinheiro, ostentação e um possível retorno do Rimas e Melodias — grupo de soul e hip-hop formado em 2015 também por Alt Niss, Drik Barbosa, Karol de Souza, Mayra Maldjian, Stefanie e Tatiana Bispo]. Leia abaixo:

CNM: Para me preparar para a nossa conversa, eu tava lendo em algumas entrevistas que você tava com um tour marcada na Europa, né?

Em 2020, a gente tava com tours, no plural, marcadas fora do país. Íamos tocar na América do Norte, Estados Unidos e Canadá, e fazer um pedacinho de Europa e tinha também um festival na África agendado. Íamos dar uma rodada no mundo, só que aí veio a pandemia e a gente não pode ir, mas tudo bem. Já superamos isso. Agora, estamos retomando, voltando a fazer shows. Já fiz meus primeiros shows aqui em São Paulo e pretendo no ano que vem poder voltar a fazer turnê pelo mundo afora.

CNM: Agora, sobre o Próspera D+, como foi o processo de criar na quarentena e como surgiu a ideia de soltar um disco de remixes nesse período?

Eu tava bem na dúvida, pensando se continuava trabalhando o Próspera, um disco de 2019, ou se já lançava material novo. Aí, perguntei para os meus fãs no Instagram no Twitter e a galera falou para eu não abandonar o Próspera. sabe? Fiquei quebrando a cabeça, pensando num jeito que conseguisse dar uma atualizada nele. Enfim, porque né, as coisas voltaram e tudo mais. E, por mais que a gente tenha tido uma pandemia no meio do caminho, já fez dois anos que lancei ele, né? 

Aí veio a ideia de fazer uma versão Deluxe, mas que sai um pouquinho do padrão de

Deluxe. É um mix de versão deluxe com disco de remixes, porque, além das faixas remixadas, tem músicas novas e também a gente manteve algumas faixas intactas, na versão original. 

A gente deu esse “F5” no disco e expandimos o conceito do Próspera, que é um álbum que retrata uma busca por um equilíbrio na vida, mas também clamando por uma vontade de viver, porque durante muito tempo me senti muito triste durante essa pandemia, né? Não foram tempos fáceis para muita gente. Eu tava precisando dessa injeção de ânimo, dessa vontade de viver, dessa alegria. É por isso que o Próspera D+ é mais para cima, mais alegre, mais dançante. É o que eu acho que a gente tá precisando agora.

CNM: Em muitas das suas músicas, você exala muita autoconfiança. “Preta D+”, por exemplo, é uma delas, na qual você ressignifica positivamente o significado de ser “preta demais”, cantando que você “é demais, é incrível”. Qual é a importância que você enxerga de trazer essa confiança e essa autoestima para a sua obra? 

A gente vive num mundo onde as pessoas são muito carentes de autoestima e autoconfiança. Apesar de ser leonina, nem sempre foi assim. Nem sempre me senti confiante e com a autoestima em dia para poder cantar sobre isso. Sem querer ser coach, mas sempre houve práticas religiosas e outras práticas de afirmações positivas e outras coisas que me ajudam a ter uma generosidade comigo mesma.Também venho aprendendo também muito com terapia.Acho que a gente se autossabota demais e acaba se colocando de lado, pondo muitas prioridades na frente. E é muito louco, porque se a gente não tiver bem, como a gente vai dar conta de tudo, né? A equação não fecha. 

Talvez eu fale disso nas canções porque reflito muito sobre isso. Luto muito contra a minha autossabotagem e apesar de ser uma pessoa positiva na maior parte do tempo, também sou realista. Sei que a gente vive numa sociedade que me oprime e oprime outras pessoas de várias formas e, por isso, acredito que temos que encontrar um equilíbrio para não sermos mais uma coisa contra a gente mesmo, sabe? Nós, pessoas pretas, fora do padrão, mulheres, LGBTQIA+, já enfrentamos muitas adversidades dia após dia para sermos mais um fator contra nós mesmos.

Sei que não é fácil e nem sempre a gente consegue lutar contra isso, ou se tornar super confiante, mas é legal estar sempre atenta. São versos que escrevo sobre e para mim mesmo e acaba refletindo em outras pessoas. Acham que faz sentido, gostam, escutam e acabam se sentindo melhor, se sentindo bem sendo elas mesmas, com a sua pele, com quem elas são, o que para mim faz muito sentido, porque já estive por muito tempo nesse lugar, já não gostei de estar na minha pele, de alguma forma. Quando eu digo “na minha pele”, não digo só pela minha cor, especificamente. Estou dizendo que já não gostei de estar habitando esse corpo, com todas as questões que isso pode me trazer na sociedade. É sobre aprender a me acolher também.

CNM: E você pode contar um pouco sobre esse processo tipo? Como começou essa transformação de ter essa visão negativa sobre você mesma e passar a ter uma mais positiva?

Não sei se teve um momento específico, acho que não tem um ponto de virada. Quanto mais a gente se conhece, mais temos oportunidade de se descobrir mesmo.

Às vezes, falamos de “aceitação”, mas não gosto muito da palavra “aceitação”. Parece que a gente tem que aceitar algo que não é bom, quando, na verdade, só é algo — não necessariamente bom ou ruim. Nós somos pessoas, seres humanos, que carregamos um monte de coisas boas e um monte de coisas ruins. Vários momentos de altos e baixos.  tals. 

Não consigo demarcar um momento em que consegui enxergar isso, talvez sempre tentei buscar o equilíbrio entre qualidades e defeitos de alguma forma. Talvez o amadurecimento, o tempo e a terapia tenham ajudado bastante.

CNM: O que você acha de movimentos como body-positive, que vem tomando conta de parte da Internet e de discursos de veículos de mídia mais progressistas?

É importante. A sociedade acaba exigindo uma perfeição da gente. De tempos em tempos, existe um padrão estabelecido que raramente as mulheres conseguem alcançar. Até mesmo as mulheres mais perto desse padrão, brancas e magras, parece que nunca vão conseguir alcançar, nunca vai ser suficiente. É muito sacrifício para tentar alcançar um ideal que talvez nem seja o que a pessoa quer de fato, sabe? E imagina que saco se todo mundo fosse igual? 

Eu sou uma mulher grande, né? Sou alta, tenho 1,80m de altura, então já chamo atenção em qualquer lugar que chego pelo meu tamanho. Movimentos assim são importantes para a gente se sentir o máximo confortável no nosso corpo. 

Mas também temos que tomar cuidado, porque sem querer acaba estabelecendo novos padrões também. E o ideal é que não houvesse padrão de nada, né?

CNM: Você não é uma artista que tá sempre cantando sobre dinheiro e ostentação, mas um dos hits do seu disco é Dollar, Euro. Qual você acha que é a importância de cantar sobre esse assunto, da sua perspectiva?

É muito importante a gente, pessoas como eu, que vieram da periferia, melhorar a nossa relação com o dinheiro, com inteligência financeira. 

Muita gente acha que “Dollar, Euro” é uma música sobre ostentação, mas na verdade é um grande deboche sobre o que as pessoas imaginam da minha vida: de que eu virei artista e tô rica. 

Na música, eu tô questionando alternativas sobre a nossa relação com o dinheiro. Quando falo de “bitcoin” e para pensar: será que a gente deveria estar investindo em criptomoeda? Porque aconteceu com o 50 Cent. Ele tinha declarado falência, mas depois descobriu que tinha uma grana em bitcoin, por aceitar criptomoeda como forma de pagamento de um álbum [o Animal Ambition, de 2014], e o bitcoin valorizou com o tempo. Então, boto esses questionamentos em dúvida: será que criptomoeda é bom ou não é bom? Imagina se a periferia se organizasse a ponto de fazer uma grana coletivamente assim? E esse dinheiro voltasse para a quebrada?

CNM: Mas na música, você não fala “Ouço conversa sobre bitcoins/Minha mente diz: Bitch, corre”?

Bitch, corre! Aí, corre pra quê? Corre do bitcoin ou corre para fazer bitcoin? [Risos]. Não sabemos! Até hoje não sei se devo ter bitcoins ou não. Nem tudo tem que ser resolvido numa música. É como uma pintura, você não precisa ler um livro para entender e sentir uma pintura.

CNM: Para finalizar, eu queria saber se tem alguma novidade sobre o Rimas e Melodias [grupo de soul e hip-hop formado em 2015 por Alt Niss, Drik Barbosa, Karol de Souza, Mayra Maldjian, Stefanie, Tássia Reis e Tatiana Bispo]?

A gente tem vontade de fazer muita coisa, mas ainda não temos datas. Estamos tentando entender as agendas de todas, porque achamos esse encontro muito potente, então, estamos aí nos movimentando para viabilizar esse come-back.

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