“Estava compondo aos 92 anos”, diz Lucas Nobile, biógrafo de Dona Ivone Lara

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Lucas Nobile e Dona Ivone Lara/Arquivo Pessoal

Aos 43 anos, Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a integrar a ala dos compositores de uma escola de samba do grupo especial, em 1965, quando a Império Serrano desfilou no carnaval do Rio de Janeiro embalados ao som de Os cinco bailes da história do Rio (Ivone Lara, Silas de Oliveira e Bacalhau, 1965). Seu legado, no entanto, não se restringe ao pioneirismo que ela exerceu no universo das agremiações carnavalescas. Com a alcunha de a Primeira Dama do Samba, Yvonne Lara da Silva foi também uma das maiores compositoras e autora de algumas das melodias mais bonitas e famosas da história da música brasileira. Grande responsável por abrir alas para as mulheres compositoras, no samba e para além dele, Dona Ivone Lara teve suas obras gravadas por grande artistas da MPB como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Vanessa da Mata, entres outros.

A vida da compositora e sambista carioca, que, apesar de compor e tocar cavaquinho desde a infância, só conseguiu se dedicar exclusivamente à carreira artística a partir de 1977, aos 55 anos, depois de se aposentar como enfermeira, é contada em Dona Ivone Lara: a primeira-dama do samba (Sonora Edições, 2015), biografia escrita pelo jornalista e pesquisador musical Lucas Nobile. Conversamos com o autor sobre o processo de escrever o livro, a importância do pioneirismo de Dona Ivone Lara e a influência da sua obra na nova geração. Leia abaixo:

Casa Natura Musical:Como surgiu a possibilidade de fazer a biografia da Dona Ivone Lara? Como era seu relacionamento com ela antes do livro?

Lucas Nobile:Foi um convite que me chegou em 2014. A Musickeria – produtora responsável pelo projeto Sambabook – e a Sonora Editora estavam procurando alguém que pudesse contar a rica trajetória de Dona Ivone. Eles chegaram até mim por indicação do Hamilton de Holanda e do Marcos Portinari (produtor do Hamilton), a quem sou muito grato até hoje. Antes do livro, eu já havia entrevistado Dona Ivone para jornais em que trabalhei, como Folha de S. Paulo e Estadão. Por tocar cavaquinho desde os 14 anos,  já conhecia quase que a totalidade da obra dessa compositora e intérprete tão única. Poder escrever sobre Dona Ivone é algo que vou levar por toda minha vida. Imagine quantas pessoas já sonharam em um dia poder escrever um livro. Eu, que também sonhava, ganhei esse presente; meu primeiro livro é sobre esta figura tão importante para a cultura brasileira. É muita ventura.

CNM:Quanto tempo você ficou em função de escrever o livro?

LN: Como se tratou de um convite que me foi feito por terceiros, eles tinham um prazo relativamente apertado: pouco mais de um ano para entregar o livro pronto. Confesso que foi um tanto quanto corrido, se compararmos com o tempo que tive para fazer meu segundo livro (“Raphael Rabello: o violão em erupção”, Ed. 34), seis anos. No fim das contas, o livro sobre Dona Ivone foi muito bem recebido e atualmente está na segunda edição, disponível nas livrarias desde 2018.

CNM: Você morava aqui em São Paulo e ela no Rio? Como foi essa dinâmica?

LN: Foi um trabalho de produção complexo. Além da Dona Ivone, o livro conta com mais de 60 personagens entrevistados. Como a maioria morava no Rio, eu tinha sempre que afinar direitinho as agendas. Além, claro, de organizar bem o tempo para conseguir pesquisar os acervos de muitas instituições públicas e de coleções particulares. Com a própria Dona Ivone, estive poucas vezes durante a feitura do livro. Explico: como ela estava com a memória um tanto quanto vacilante – natural para quem tinha a idade avançada -, estive poucas vezes com ela para entrevistá-la. Da minha parte, os encontros com Dona Ivone se deram mais no sentido de absorver aquele axé especial dela.


CNM: Dona Ivone Lara ficou consagrada como pioneira pela composição de “Os cinco bailes da história do Rio” (1965) que, apesar de não ter sido o primeiro samba-enredo composto por uma mulher na história, foi o que a fez se tornar a primeira mulher a integrar a ala especial de compositores de uma escola de samba. Algumas de suas composições foram interpretadas por grandes nomes da MPB, como Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano, entre outros. Mesmo assim, é difícil de encontrar seus discos nas plataformas de streaming de forma integral. Qual é a sua percepção do lugar que Dona Ivone Lara ocupa para a nova geração, tanto de sambistas, quanto de artistas da nova MPB e do público? 

LN: Esse assunto é complexo e rende muito pano pra manga. Fala-se muito desse pioneirismo louvável e intransferível da Dona Ivone. Ela influenciou e estimulou muitas outras mulheres no samba, como Alcione, Leci Brandão, Beth Carvalho, Cristina Buarque, Fabiana Cozza, Teresa Cristina, Nilze Carvalho, todas maravilhosas. Na música popular brasileira como um todo, felizmente a gente vê cada vez mais mulheres se destacando não apenas como intérpretes, mas também como compositoras. Sem contar nas diversas rodas de samba feitas apenas por mulheres em todo o país, num número também crescente. No universo das escolas de samba, não há dúvidas de que Dona Ivone abriu portas. Infelizmente, acho que esse legado não durou muito – e as posições de certo destaque (como compositor ou intérprete) ainda são dominadas majoritariamente por homens. Nos dois últimos anos, a Mangueira se destacou com sambas compostos por uma mulher, a Manu da Cuíca, conquistando, inclusive, um campeonato. Torço para que sirva de exemplo para outras agremiações.

Ainda que de uma forma esparsa, a discografia da Dona Ivone pode ser encontrada na internet, no YouTube, por exemplo. Dona Ivone tem 12 discos; sete estão no Spotify. O que mais lamento de não estar lá é o primeiro: “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz”, lançado em 1978, com produção do grande Adelzon Alves. É, sem dúvida, o disco mais impressionante da Dona Ivone. Eu costumo brincar, dizendo que este álbum deveria ser incluído na grade curricular das escolas. Além de ser uma aula de música, é aula sobre cultura, história, diversidade e respeito; a começar pela capa: uma mulher (Yvonne da Silva Lara)  empunhando seu cavaquinho, imponente, em primeiro plano, à frente de uma dezena de homens. Outro dia mostrei esta capa para minha sobrinha, que tem 15 anos, e ela falou: “Isso, sim, é que é lacrar”. Em 1978...

CNM: Qual foi a primeira composição de Dona Ivone Lara (com ou sem o nome dela?) E quando? E a última?

LN: Dona Ivone teve, desde cedo, uma formação musical muito rica. Aprendeu o jongo, o choro, o canto orfeônico (prática de canto em coral), as marchas dos ranchos carnavalescos, o samba de terreiro, o samba-enredo, o partido-alto, o samba canção, a valsa. E compôs sua primeira música, “Tiê”, aos 12 anos, em parceria com seus primos, Mestre Fuleiro e Tio Hélio. Criada em uma sociedade absolutamente masculinizada e machista, ela só pôde gravar essa sua primeira composição 40 anos depois. Já a última composição dela, é difícil dizer. Para se ter uma ideia, quando cheguei a casa dela em 2014, encontrei Dona Ivone solfejando, cantarolando uma melodia em seu quintal. Era mais uma inédita. Ela estava compondo aos 92 anos. Era algo tão natural como impressionante.

CNM: Como o choro influenciou na formação musical e na composição de Dona Ivone Lara?

LN: O choro é o gênero musical mais antigo do Brasil, anterior ao samba, por exemplo. Dona Ivone teve uma base muito forte do choro em sua formação. O tio dela, Dionísio Bento da Silva, tocava trombone, violão sete cordas e cavaquinho. Ele fazia saraus em sua casa e recebia grandes nomes como Candinho, Pixinguinha etc. Desde pequena, a Ivone tomou contato com isso. E foi esse tio que ensinou Dona Ivone a tocar cavaquinho. Em termos de riqueza de melodias, contracantos e harmonias, o choro foi muito importante para a construção das composições da D. Ivone. O mesmo vale para as obras do Paulinho da Viola e do Elton Medeiros, outros dois compositores de quem gosto muito.Ivone Lara, Elton Medeiros, Paulinho da Viola e Elza Soares em programa de TV (1983) | imagem: acervo da família

CNM: Qual(is) discos ou canções você indica para quem quer se aprofundar na obra de Dona Ivone Lara?

LN: Escolher isso é praticamente missão impossível (risos). Dona Ivone tem inúmeras composições belíssimas que acabaram ofuscadas por seus grandes sucessos. Recomendaria os quatro primeiros LPs dela, está tudo ali. “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz” (1978), “Sorriso de Criança” (1979), “Sorriso Negro” (1981) e “Alegria, Minha Gente – Serra dos Meus Sonhos Dourados” (1982).

CNM: Além da carreira como enfermeira, teve algo que a impediu de se dedicar exclusivamente à carreira artística?

LN: O machismo. Além de ser muito dedicada a seu primeiro ofício – Dona Ivone se formou em enfermagem, se especializou em assistência social e terapia ocupacional e trabalhou por 37 anos ao lado da também revolucionária Nise da Silveira no tratamento de doentes mentais. Só depois de se aposentar – e de seu marido, muito ciumento, morrer – é que ela pôde gravar seu primeiro álbum e se dedicar exclusivamente à carreira artística, em 1978. Ainda assim, felizmente deu tempo de Dona Ivone se tornar conhecida, consagrada e de ter suas músicas povoando o imaginário brasileiro até hoje.

Texto publicado na newsletter #19 da Casa Natura Musical, disparada no dia 9 de abril de 2020.

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